“As raízes platónicas do pensamento Maçónico”

Meus Irmãos,

Pretendem estas curtas sílabas, humildemente alinhadas, avaliar da ligação entre o pensamento grego, Platónico, e as raízes do ideal maçónico, nomeadamente na explicitação filosófica subjacente à simbologia estruturante/fundante da Maçonaria. Uma obra, de excelência, em que tal correlação é passível de constatação (que adiante se mostrará) verifica-se no texto da “República” e mais eloquentemente na apresentação da célebre “Alegoria da Caverna” com toda a sua carga figurativa. Esta obra trata do diαlogo ocorrido na casa de Céfalo com Sσcrates, entre outros (embora nem todos participem na discussão), sobre o significado de justiça e de como é/deverá ser a vida do homem da/na cidade Justa e Perfeita, desenrolando-se essa busca sempre na dicotomia Aparência V.S Realidade; Ideia V.S. Sombra; Luz V.S. Trevas; Branco V.S. Negro…

I-Pequena biografia de Platão

É hoje universal convicção que Platão constitui um dos maiores filósofos de todos os tempos e, portanto, um dos mais altos vértices do pensamento antigo Grego, tendo-nos legado cerca de trinta textos (sob a forma de diálogos) onde, na maioria dos quais, Sócrates é a personagem principal, sendo que nas primeiras obras se crê que Platão exprime principalmente o pensamento do seu mestre.

Nascido em Atenas [ou na ilha de Egina, no mês de Tergelion (Maio)] em + 427 a.c. sendo o seu verdadeiro nome Arístocles (derivado do seu avô, e em homenagem a este) Kodros (apelido paterno) sendo que Platão/Platón um pseudσnimo proveniente de Argos, seu mestre de ginαstica, pelo seu vigor físico/estrutura/largura de ombros e feitos atléticos de juventude ou talvez, segundo alguns, este nome possa derivar da amplitude do seu pensamento/capacidade de reflexão (este vocαbulo deriva de Platys, termo que estα na origem das palavras plateia, praça, significando espaço amplo/largo). Filho de Aríston (da família de Kodros, ϊútimo rei de Atenas) e Perictionι (ou Potone, descendente de Sσlon, um dos sete grandes sαbios gregos, poeta e reformista político/social).

Sendo, então, de origem aristocrata/nobre abastada e antiga, recebeu a melhor educação que se podia ter naquela época denotando desde cedo um temperamento artístico e dialéctico – característica do génio grego – que o acompanhou durante a toda a vida, manifestando-se na expressão estética de seus escritos. No entanto isto parece ter influenciado em demasia o rigor e a ordem do seu pensamento uma vez que várias partes de suas obras têm mais importância estética/literária do que filosófica, até porque, no princípio da sua actividade, se dedicou primeiramente à poesia tendo posteriormente deixado o “cultivo das musas” para se entregar à Filosofia.

Foi Aristón que ensinou, pelo menos de início, o seu filho a ler e a escrever, sendo manifesta a facilidade com que ele aprendia. Ainda jovem, Platão familiarizou-se com Crátilo, discípulo de Heráclito (filósofo que desenvolveu a ideia de Devir/mudança constante de grande influência no pensamento renascentista) e, por seu intermédio, com a doutrina heraclitiana. Mas um dia Aristocles/Platão ouviu falar de um tal filósofo Sócrates, considerado o mais sábio dos mortais pelo oráculo de Delfos (em cujo templo estava inscrito o lema máximo da sabedoria cuja tradução latina é “HOMO GNOSCE TE IPSUM”, Homem conhece-te a ti mesmo, o que faz lembrar a essência do V.I.T.R.I.O.L.) Este filósofo, verdadeiro mestre, porque reconhecia a sua própria ignorância, encantava os jovens pelo seu modelo de virtude, humildade, e por ridicularizar os pretensos/falsos sábios da época, mostrando/ridicularizando publicamente a ignorância destes, o que divertia bastante os mais novos.

Aristón resolveu enviar o seu filho, quando alcançou vinte e um anos, para ser discípulo de Sócrates (mais velho quarenta anos) a quem acompanhou durante cerca de dez, até à morte do mestre em 399 a.c.. Com este gozou Platão do seu ensinamento e amizade, estudando também com os maiores pré-socráticos. Depois da morte de Sócrates retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em Mégara.

O processo e a condenação de Sócrates – acusado falsamente de corromper a juventude e de não acreditar nos deuses da cidade – deixaram-no profundamente abalado. A partir dessa altura, não deixou de procurar ver em que medida poderia contribuir para melhorar a vida política e a constituição do estado. Deu-se conta que essa melhoria somente poderia ser efectuada através da Filosofia.

“Vi que o género Humano não mais seria libertado do mal se antes não fossem ligados ao poder os verdadeiros filósofos, ou os regedores do estado não fossem tornados, por divina sorte, verdadeiramente filósofos.” (Platão, Carta VII).

Em risco de ser perseguido por ser aluno de Sócrates, deu início às suas viagens, e fez um vasto percurso pelo mundo para se instruir (+390-388). Visitou o Egipto, de que admirou a respeitável antiguidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contacto será fundamental para o desenvolvimento do seu pensamento e dos primeiros anos da Academia); a Sicília, onde conheceu Dionísio I, o Antigo, a convite deste, tirano de Siracusa (a quem deve ter tentado inculcar a ideia do Rei Filósofo) e travou amizade profunda com Dion, cunhado daquele, em quem Platão pensou encontrar um discípulo dos seus ideais políticos… Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua fraqueza, consta (segundo Diógenes Laércio) que foi vendido como escravo a um embaixador espartano em Egina (mas o que aconteceu, com maior probabilidade, foi apenas ter sido expulso para Egina – em guerra com Atenas – e aí detido como escravo)… Libertado graças a um amigo, Anicérides de Cirene, que se encontrava nesse Local, voltou depois a Atenas. (Após a morte de Dionísio I, repetiu as viagens a Siracusa em 366 e 361, tentando levar a cabo novamente os seus ideias políticos, mas os resultados foram sempre desastrosos)

Em Atenas, pelo ano de +387 a.c., Platão fundava a sua célebre escola/Academia (considerada a primeira verdadeira escola de filosofia) numa herdade/quinta que adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, nos jardins de Academo onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade colectiva da escola e foi por ela conservada durante quase um milénio, até ao tempo do imperador Justiniano (529 d.C.). [Academo, herói ateniense da guerra de Tróia (século XII a. C.), que ajudou Castor e Pollux a encontrarem a irmã destes, Helena, raptada por Theseu. Por isso, quando os lacedemónios devastaram a Àtica, em respeito à sua memória, pouparam a terra a noroeste de Atenas, que lhe havia pertencido sendo, então, transformada em “Jardim de Academo”]. Daqui se originou o vocábulo Academia, criada no apogeu da civilização grega que consistia numa residência, uma biblioteca e um jardim. Nesse local, que se firmou muito depressa e atraiu jovens e também homens ilustres em grande número, as mulheres também eram admitidas embora tivessem que trajar de modo masculino. Foi à sombra das árvores que, durante quarenta anos, Platão reunia os seus discípulos com o objectivo de elaborarem contribuições no campo da filosofia, da matemática, da astronomia, da legislação e da música. Este espaço abrigou uma intensa actividade filosófica, professando um ensino informal (onde não apenas se ensinava mas também se produzia saber, o que não acontece na escola actual) por meio de lições e de diálogos entre mestres, como o matemático Eudóxio de Cnido, e discípulos, como Aristóteles (que ingressou aos 17 anos), Speusippo (348-339 a.C.) – sobrinho de Platão – e Xenócrates (339-315 a.C.). Este acompanhou Aristóteles à Ásia Menor, antecipando a volta para assumir a direção da Academia. A Academia Antiga passou a ser denominada pelos historiadores Academia nova subdividindo-se em Academia do meio, que é o tempo de Arcesilaus (c. 315-240 a.C.) e Terceira Academia, sob Carneades (215-129 a.C.). Inicialmente a escola caracterizou-se pela continuidade dos trabalhos desenvolvidos pelos pitagóricos, com os quais Platão mantinha estreita relação: particularmente com seu mestre Teodoro de Cirene e Arquitas de Tarento.

Platão, depois das últimas visitas a Siracusa (366 a.c. e 361 a.c.), fica à frente da Academia até ao final da sua vida em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade, após inteira dedicação à especulação metafísica, ao ensino filosófico e à escrita das suas obras. Dá-se assim finalmente a libertação da Alma (anima, lat.) do cárcere (corpo) em que este, pelas necessidades/vícios/debilidades dos sentidos é um entrave à sabedoria e respectiva libertação espiritual… A filosofia é um instrumento de elevação do espírito e de acesso ao plano/mundo superior do conhecimento, uma ferramenta que desbasta a pedra bruta do templo interior receptáculo/prisão da alma… Tal é a doutrina, numa simbiótica perspectiva maçónica, caracterizada principalmente pela teoria das ideias e dos números e pela preocupação com os temas da moral, com base no conhecimento das verdades essenciais/modelos que determinam a realidade, visando toda meditação filosófica o conhecimento do Bem (que no ideal platónico era o Sol/Luz de todas as outras ideias).

O conhecimento do Bem, a suprema ideia que ilumina todas as outras, torna-se possível a implantação da justiça entre os estados e entre os homens. Tais pressupostos (a que se juntam as figuras de Sócrates e Aristóteles) não só foram absorvidos como são o alicerce fundamental do pensamento/filosofia cristã/medieval como a essência do pensamento/filosofia ocidental, estando também, naturalmente, incrustados na simbologia maçónica…

Há uma íntima e harmónica ligação entre o plano do conhecimento e da acção (moral, política), e a ferramenta que possibilita essa articulação é a filosofia ao libertar o espírito dos cuidados do corpo, como afirma Descartes… O filósofo assume, então, uma dupla missão especulativa e operativa…

Nesta dupla dimensão é de fundamental importância o “Filósofo-Rei” (Homem que, platonicamente, está mais próximo da ideia de Bom, Belo, Justo, corporizando correlativamente todas as colunas do templo maçónico), representando a luz do conhecimento para os seus concidadãos exercendo a essencial condução no destino do estado democrático que, segundo Platão, é expressão dos valores de fraternidade, igualdade, solidariedade, tão caros à sociedade humana… Mas a prossecução de tais ideais só é alcançada quando as paixões cedem à Razão/Logos sustentando-se o governo nos pilares da Educação (Paideia) e da Justiça (Diké). Com algum sentido podem ser perspectivados, mais uma vez, nestes pilares/colunas a simbologia do templo maçónico em que a sabedoria se identifica com a Razão (pois o termo grego Logos tem essa carga semântica); a Educação/Paideia, ao abrir a sensibilidade à contemplação das ideias, construção de uma temperança individual, associa-se, entre outras, à coluna da beleza (que encerra em si o ideal de proporção, e daí a temperança), e a Justiça/Diké liga-se à força, vigor, empenho, com que cada um exerce o que lhe é devido em sociedade (e, portanto, com máxima intensidade).

Não parece ofender, do ponto de vista lógico, estabelecer, então, esta correlação entre os pilares do estado e os pilares do Templo. Todas as colunas do templo, tal como os alicerces da governação, confluem no desenvolvimento de um quarto elemento/pilar/coluna que é o próprio Homem, tornado filósofo/Maçom através da busca de si mesmo (“HOMO GNOSCE TE IPSUM”, V.I.T.R.I.O.L)

II-A Alegoria da caverna

A República é um diαlogo (em que com Sócrates personagem central) escrito no século IV a.C. (e tendo por pano de fundo a fictνcia cidade de Callipolis, que significa cidade bela) onde sγo questionados os assuntos da organizaηγo social (teoria polνtica, filosofia polνtica) expondo o autor uma extraordinαria concepção sobre o estado ideal, afirmando que os regimes políticos existentes em qualquer época nada mais são do que expressões dos caracteres (ethos/costumes) humanos. Assim, por exemplo, o gosto pela ordem, pela hierarquia e tradição, sustenta a monarquia, enquanto o desejo de pertencer a um grupo exclusivo e a tendência de sσ a ele favorecer gera a oligarquia. Por outro lado, a inclinação egoísta que alguns têm é enriquecer e é amealhar tesouros é a base do regime timocrαtico, enquanto o pulsar do sentimento de fraternidade, igualdade e solidariedade, existente entre os homens, inspira-lhes o viver numa democracia. Finalmente, o temperamento colírico, raivoso e descontrolado de certas personalidades fortes, dα sustento é tirania. Logo, por detrαs de tudo, de quem faz a política, nas suas mais variadas formas (monαrquica, oligαrquica, timocrαtica, democrαtica) ι o Sentimento.

Este diálogo tem uma extensão considerável, articulada pelos tópicos do debate e por elementos dramáticos. Exteriormente, está dividido em dez livros, subdividido em capítulos e com a numeração de páginas do humanista Stéphanus da tradição manuscrita e impressa. A organização do diálogo em 12 secções, assinaladas no texto Grego, deve-se a estudiosos da escola alemã, sobretudo Kurt Hildebrandt e também a Francis Cornford e Eric Voegelin, e pode ser assim sumariada:

Organização da obra

Prólogo I.1 327a-328b Descida ao Pireu. / I.2-I.5 328b-331d Céfalo. Justiça segundo os mais velhos. / I.6-I.9 331e-336a Polemarco. Justiça segundo a meia idade. / I.10-I.24 336b-354c Trasímaco. Justiça segundo os Sofistas.

Introdução

II.1 – II.10 357a-369b Questão: a justiça é preferível à corrupção?

Parte I O Paradigma da Cidade-Estado

1.II.11-II.16 369b-376e. Origem da cidade / 2.II.7-III.18 376e-412b. Educação dos responsáveis / 3.III.19-IV.5 412b-427c. Constituição da Cidade-Estado / 4.IV.6-IV.19 427c-445e. Justiça na cidade

Parte II A encarnação do Paradigma

5.V.1-V.16 449a-471c Unidade somática da cidade e dos Gregos / 6.V.17-VI.14 471c-502c Governo dos filósofos / 7.VI.15-VII.5 502c-521c A ideia do Bem / 8.VII.6-VII.18 521c-541b Educação dos filósofos

Parte III O Declínio da Cidade -Estado

9. VIII.1 -VIII.5 543a-550c Timocracia / 10. VIII.6 -VIII.9 550c-555b Oligarquia / 11. VIII.10-VIII.13 555b-562a Demagogia / 12. VIII.14-IX.3 562a-576b Tirania

Conclusão

IX.4-IX.13 576b-592b. Resposta. Justiça melhor que corrupção

Epílogo

X.1-X.8 595a-608b. Rejeição da arte mimética / X.9-X.11 608b-612a Imortalidade da alma / X.12 612a-613e Recompensa dos Justos em vida / X.13-X.16 613e-631d Julgamento dos mortos

Relativamente ao tema proposto assume particular importância a passagem conhecida como a “Alegoria da Caverna” que é um excerto de riqueza hermenêutica quase inesgotável (lembremos a correlação simbólica com a saga Matrix), fundamento da simbologia Cristã, das dicotomias Trevas/Luz; Sabedoria/Ignorância; Bem/Mal; Aparência/Realidade; Mundo Superior/Inferior, ou da concepção de educação, Filosofia, poder, etc. A uma nova luz, expressa agora pelo olhar de um aprendiz de maçom, ouso considerar que podemos também, como até aqui se tem assinalado, encontrar a raíz de alguns dos sinais maçónicos.

República, Livro VII, 514a-517c

O texto:

(http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/platao/caverna.htm)

Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência.

Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos “robertos” colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.

– Estou a ver – disse ele.

– Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.

– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.

– Semelhantes a nós – continuei -. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?

– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?

– E os objectos transportados? Não se passa o mesmo com eles?

– Sem dúvida.

– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?

– É forçoso.

– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?

– Por Zeus, que sim!

– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objectos.

– É absolutamente forçoso – disse ele.

– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?

– Muito mais – afirmou.

– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?

– Seria assim – disse ele.

– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objectos?

– Não poderia, de facto, pelo menos de repente.

– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e, por último, para os próprios objectos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.

– Pois não!

– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.

– Necessariamente.

– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.

– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.

– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros?

– Com certeza.

– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo “servir junto de um homem pobre, como servo da gleba”, e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?

– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira.

– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu -. Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?

– Com certeza.

– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?

– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.

– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.”

Em Síntese, temos como local da acção a caverna, nas obscuras entranhas da terra, onde habitam prisioneiros acorrentados. Em interpretação simbólica, todos nós somos os prisioneiros, do nosso corpo, do mundo, das paixões, dos vícios… Enfim da nossa própria ignorância… Mas, no entanto vivemos na convicção ilusória de que a realidade é tal como os nossos olhos nos mostram… Como que a dizer que a máxima ignorância não é não saber mas sim, não saber que não se sabe… Por isso o oráculo de Delfos falava verdade ao dizer que o homem mais sábio da Grécia era Sócrates, aquele que dizia de si mesmo: Só sei que nada sei… De facto a base de toda a sabedoria é o reconhecimento da ignorância, e sua aliada humildade… O início do percurso maçónico, depois de passadas as provas e/ou viagens, pretende incutir/entranhar no aprendiz o primordial sentimento de profunda ignorância… Pois só quem reconhece nada saber pode/sente necessidade de iniciar incessante caminho de busca do conhecimento, mais propriamente, de si próprio…

Mas se de entre os prisioneiros um ascender à Luz, se formos capazes de sair da gruta e, com coragem enfrentar o caminho/viagem para o radioso sol que faz doer o olhar (tal como acontece quando o aprendiz tira a venda na cadeia de união), facilmente nos apercebemos de quanto vã era a nossa existência… Simbolicamente entramos noutro mundo, ou noutra forma de o ler e viver… De imediato, conforme a habituação à luminosidade vai permitindo, vão-se mostrando-se coisas novas ou compreendendo como era falaciosa a imagem que até aí tínhamos do real, das coisas, de nós e dos outros

Um aspecto algo extraordinário na história de Platão é o de que o prisioneiro que se solta da escuridão o faz por imposição de alguém que a isso obriga… E a essa libertação o próprio resiste, porque o cativeiro o conformou física e espiritualmente a uma existência alienada e fictícia…

Mas, se depois de libertado e de contemplar o real, quisermos que retorne para junto dos antigos companheiros, forte será agora a sua resistência… Se, no entanto, voltasse para junto de seus”irmãos” cativos e tentasse mostrar-lhes que as sombras que viam na caverna, do que se passava no exterior, nada tinha a ver com o que, de facto, acontecia lá fora a reacção dos companheiros seria matá-lo… A profundíssima riqueza desta passagem permite visualizar muito do caminho maçónico… O que detém a efémera luz do conhecimento tem o dever, sagrado, de tentar conduzir também os seus irmãos para a luz, estando junto deles na superação das duras provas da ascese…

Tarefa que não é fácil… Contrariando um pouco o adágio popular, em terra de cegos, quem tem olho, mais do que querer ser rei, quer ser irmão ajudando o próximo a alcançar a luz… Pode vislumbrar-se aqui ainda a compreensão de que os maçons/maçonaria enfrentam os perigos próprios de quem transporta a palavra sábia, esclarecida, relativamente aos que vivem no conforto inerte da obscura ignorância… Por isso a fraternal união dos irmãos é um/o elo de sobrevivência de toda a irmandade… Por outro lado, a conjunção das duas vertentes do percurso maçónico… A especulativa, na busca do conhecimento e combate às trevas, numa tentativa de apropriação do real… por outro lado a vertente operativa, pois ser possuidor de um saber, conduz a que esse saber deva ser aplicado na transformação do homem e do mundo, tal como Platão encarava na tarefa do Filósofo-Rei… A caverna, na sua aparência, e as sombras que nas suas paredes se projectam, pela obscuridade e consequente imagem nebulosa que advém à nossa mente, identifica-se com a pedra bruta… O mundo a que os ex-cativos ascendem, em que pela luz é permitido observar tudo com mais detalhe e rigor, simboliza a pedra polida… A passagem da luz às trevas é o árduo caminhar da pedra bruta à pedra polida, da existência do mundo profano ao mundo maçónico, em que a realidade ganhas novas cores interpretativas de significação e, consequentemente um outro plano de realização Humana, espiritual, em comunhão fraternal com todos os Irmãos…

[(Acrescento à prancha original) O acto de voltar a entrar na caverna para aí ajudar a reconverter os antigos companheiros faz parte da caminhada pessoal de progressão/crescimento… “Visita Interiorem Terrae, Rectificandoque, Invenies Occultum Lapidem”. Na ajuda ao outro redescubro-me a mim próprio como se encontrasse a pedra filosofal… Também eu renasço no renascer de cada um dos meus .’.II.’. pois a vida em irmandade sustenta/vive de um laço indissolúvel de união que quanto mais sólida mais ajudará a frutificar o progresso maçónico individual como simbolicamente expresso na imagem da “Romã” ]

A obra de Platão é riquíssima, e para um muito jovem e humilde aprendiz dos mistérios da arte real em muito curto espaço de tempo se apercebe que as linhas de texto que vai alinhavando rapidamente se enriquecem de significados e de novas ideias e conexões que vão surgindo no nosso espírito… Assim, sente-se a necessidade de escrever sempre mais… Por outro lado ao elaborar a prancha, como momento de aprendizagem que já afirmei que era, constatamos que temos de chegar ao fim e que o muito que ainda havia para dizer mostra o resultado final da nossa reflexão como algo de muito pobre pela imensidão do que ficou por dizer.

De qualquer modo, porque na arte da hermenêutica se supõe legítima a liberdade criadora da imaginação na interpretação textual, com mínimo de natural fundamento, creio como pertinentes algumas das ligações estabelecidas e que ajudam a entender algo mais da maçonaria.

Assim, à ilustre assembleia, penitencio-me pela ousadia do tempo tomado…

David

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